A PEÇA III

Desci do ônibus na BR 116 e atravessei a pista como vertigem de encruzilhada. Planalto é isso, uma grande encruzilhada. Uma cidade feita no centro de uma passagem, um entroncamento de putas, caminhoneiros e mecânicos, e o que resta do mundo se esgueirou nesta cidade. Mas, o que sobra na madrugada das cidades, aprendi, é sempre um reflexo pálido da sua vida mimada, todos os nervos descansam em sono débil e o que sobra são vampiros temerários. Tinha uma leve esperança de que ela havia mudado, minha cidade. Da minha família esperava o pior. Gostaria mesmo de ver a cara que fiz quando encontrei com Roberto, por que ele ficou tão nervoso, tão pálido, eu deveria parecer satanás. Cheguei a casa, na verdade, como um farrapo e não sei o que me deu no momento, uma leve esperança e potência me insurgiram na alma, como se o desespero que me atormentava se resumia numa imagem de gente sampaca, minha gente, tão afundada no seu mundo quanto caranguejo. Estavam diante de mim, meus três irmãos, uma mulher desconhecida e minha mãe, que chorava arbórea em seu canto de sempre, como se pai estivesse presente a olhar para mim. Não havia o que dizer, este silêncio perpétuo é um antepassado que busco em meus sonhos, uma ilusão que tento repetir. Uma sinceridade escaldante diante do que lhe é estranho e ameaçador, a minha imagem parecia irritar a cada inconstância dos meus gestos. Por que você não veio na morte de pai? Um vento fez rosnar levemente em minhas narinas a tensão raivosa do meu pranto, que facilmente ia explodir. Uma resposta insossa, nada me cabe neste mundo, eu sei. Não há também, de minha parte, nada mais a explorar, de todo modo, não custa tentar entender esta gente, minha gente. Mas, um tempo fechado quando ameaça chover pode, sem aviso, desabar em nossas cabeças. Meu irmão Jenival era o velho cagado e cuspido, uma merda. Homem ameaçador de reveses amparáveis, por nossa pena irresistível. Gritava como um cão, em cada solo da sua voz, atrás, soava rosnando uma besta ruidosa a lamentar. Um guizo ríspido que me provocou os nervos. Choro. Não há nada o que dizer. Nunca estive tão presente, nunca estive tão completo, todos aqueles olhares tristes, que não me esperavam, agora era o meu mundo a suportar. Até esquecer de mim mesmo novamente. Estou doente.

Um comentário:

  1. a partir daqui começo minha saga. explorarei sua poesia incansavelmente! um beijo, lu- www.luizaso.wordpress.com

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Paulo Tiago dos Santos

Nascido em Vitória da Conquista, "carrega água na peneira" desde pequeno, de 1900 e... esqueci...

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